Desde a elaboração do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), vem sendo objeto de divergência a questão da natureza jurídica da direção de veículo automotor sem habilitação. Para uns configura crime, enquanto outros consideram como mera infração administrativa. A finalidade do presente escrito é contribuir para o esclarecimento do assunto, oferecendo opções de leitura ao interessado no assunto.
Quanto à
natureza jurídica da conduta de dirigir sem habilitação, convém gizar, ab
initio, que a direção de veículo automotor sem habilitação configura infração
administrativa de trânsito, descrita no art. 162 do Código de Trânsito
Brasileiro, in verbis:
“Art. 162.
Dirigir veículo:
I - sem
possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir:
Infração -
gravíssima;
Penalidade -
multa (três vezes) e apreensão do veículo”.
Para
configuração do crime de trânsito consistente na direção de veículo automotor
sem habilitação, há necessidade da demonstração da existência do elemento do
tipo denominado “perigo de dano”.
Aliás, tal expressão demarca a fronteira entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, ipsis verbis:
Aliás, tal expressão demarca a fronteira entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, ipsis verbis:
“Art. 309.
Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir
ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas -
detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.
O professor
Damásio de Jesus explica em que consiste o crime de perigo de dano concreto,
verbo ad verbum:
“Perigo
concreto é o real, o que na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto
jurídico só não ocorre por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo
um sério risco (efetiva situação de perigo). Na palavra da Claus Roxin, o
resultado danoso só não ocorre por simples casualidade (Derecho Penal; parte
general, cit., p. 336). O bem sofre uma real possibilidade de dano. São aqueles
casos em que se diz que o resultado não foi causado ‘por um triz’, em que o
‘quase’ procura explicar a sua não-superveniência. São episódios em que o
comportamento apresenta, de fato, ínsita a probabilidade de causar dano ao bem
jurídico e que, para a existência do delito, é necessário provar sua
ocorrência. Perigo concreto é, pois, o que precisa ser demonstrado (valoração
ex post, ‘prognose póstuma’). Ex.: no art. 132 do CP há a definição de crime de
perigo para a vida de outrem. O perigo, no caso, não é presumido, mas, ao
contrário, precisa ser investigado e comprovado” (CRIMES DE TRÂNSITO. 8ª edição.
São Paulo: Saraiva, 2009. p. 6).
A
contravenção de “falta de habilitação para dirigir veículo”, inscrita no art.
32 do Decreto-lei n° 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), foi revogada,
segundo entendimento da doutrina amplamente majoritária e orientação uniforme
dos Tribunais Superiores.
Os mestres
Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves tratam do tema com exatidão,
ipsis verbis:
“Se o agente
é legalmente habilitado, configura mera infração administrativa o fato de
dirigir veículo sem estar portando o documento” (ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO
DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 55).
Os autores
acima citados acrescentam que “a simples conduta de dirigir sem habilitação
passou a configurar simples infração administrativa (art. 162, I), demonstrando
que o legislador quis afastar a incidência de normas penais para o caso” (obra
citada, p. 57).
Os mesmos
professores foram além, esclarecendo ainda que “pela sistemática antiga, o ato
de dirigir sem habilitação configurava concomitantemente a contravenção penal
do art. 32 e a infração administrativa prevista no art. 89, I, do antigo Código
Nacional de Trânsito. O novo Código, entretanto, tratou tanto da questão
administrativa quanto da penal, dispondo que, se a conduta gera perigo de dano,
há crime, mas, se não gera, há mera infração administrativa” (obra citada, p.
57). Os docentes concluem que “o art. 32 da Lei das Contravenções Penais está
derrogado, valendo apenas no que se refere à sua segunda parte (dirigir, sem a
devida habilitação, embarcação a motor em águas públicas)” (obra citada, p.
60).
Os
penalistas Sérgio Salomão Shecaira e Luiz Flávio Gomes ensinam que “não
ocorrendo condução anormal, inexiste crime, subsistindo apenas a infração
administrativa. Assim, se o motorista é surpreendido estando conduzindo
normalmente o veículo, só há infração administrativa (art. 162, I, II e V, do
CT)” (In DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO – conferência – Cursos sobre Delitos de
Trânsito, Complexo Jurídico Damásio de Jesus, São Paulo, 6-3-1998, apud
ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 61).
O
criminalista Renato Marcão destaca que “a mera condução de veículo automotor em
via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se
cassado o direito de dirigir, não é suficiente para a conformação típica. É
imprescindível que se associe a tal prática a ocorrência de perigo concreto,
condição sem a qual a conduta não se ajusta ao tipo em comento, ficando
remetida à condição de mera infração administrativa”(CRIMES DE TRÂNSITO. São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 206).
O excelso
Supremo Tribunal Federal proferiu decisões recentíssimas, verbo ad verbum:
“EMENTA: I.
Infração de trânsito: direção de veículos automotores sem habilitação, nas vias
terrestres: crime (CTB, art. 309) ou infração administrativa (CTB, art. 162,
I), conforme ocorra ou não perigo concreto de dano: derrogação do art. 32 da
Lei das Contravenções Penais (precedente: HC 80.362, Pl., 7.2.01, Inf. STF
217). 1. Em tese, constituir o fato infração administrativa não afasta, por si
só, que simultaneamente configure infração penal. 2. No Código de Trânsito Brasileiro,
entretanto, conforme expressamente disposto no seu art. 161 — e, cuidando-se de
um código, já decorreria do art. 2º, § 1º, in fine, LICC — o ilícito
administrativo só caracterizará infração penal se nele mesmo tipificado como
crime, no Capítulo XIX do diploma. 3. Cingindo-se o CTB, art. 309, a incriminar
a direção sem habilitação, quando gerar “perigo de dano”, ficou derrogado,
portanto, no âmbito normativo da lei nova — o trânsito nas vias terrestres — o
art. 32 LCP, que tipificava a conduta como contravenção penal de perigo
abstrato ou presumido. 4. A solução que restringe à órbita da infração
administrativa a direção de veículo automotor sem habilitação, quando
inexistente o perigo concreto de dano — já evidente pelas razões puramente
dogmáticas anteriormente expostas -, é a que melhor corresponde ao histórico do
processo legislativo do novo Código de Trânsito, assim como às inspirações da
melhor doutrina penal contemporânea, decididamente avessa às infrações penais
de perigo presumido ou abstrato. II. Recurso extraordinário prejudicado:
habeas-corpus de ofício. 5.
Prejudicado o RE do Ministério Público, dado o provimento do recurso especial com o mesmo objeto, é de deferir-se habeas-corpus de ofício, se a decisão do STJ — no sentido da subsistência integral ao CTB do art. 32 LCP, é ilegal, conforme precedente unânime do plenário do Supremo Tribunal” (STF – 1ª Turma - RE-319556/MG – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma) (vide Informativo STF n° 230).
Prejudicado o RE do Ministério Público, dado o provimento do recurso especial com o mesmo objeto, é de deferir-se habeas-corpus de ofício, se a decisão do STJ — no sentido da subsistência integral ao CTB do art. 32 LCP, é ilegal, conforme precedente unânime do plenário do Supremo Tribunal” (STF – 1ª Turma - RE-319556/MG – Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma) (vide Informativo STF n° 230).
“EMENTA: -
Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito
Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza
administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3.
Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação
em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR
GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus
conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento
da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80665/SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU
Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma).
“EMENTA: -
Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito
Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza
administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3.
Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação
em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR
GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus
conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento
da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80969 / SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA,
DJU de 24-08-2001, p. 64).
Na esteira
do entendimento sufragado pelo Pretório Excelso, o colendo Superior Tribunal de
Justiça, passou a preconizar a orientação a seguir, verbatim:
“EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. DIREÇÃO DE VEÍCULO SEM
HABILITAÇÃO. ART. 32, LCP. ART. 309, DA LEI 9.503/97 (CÓDIGO DE TRÂNSITO
BRASILEIRO). DERROGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32 DA LEI CONTRAVENCIONAL.
O Plenário
do Col. Supremo Tribunal Federal proclamou, por unanimidade de votos, que o
novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), ao regular inteiramente o
direito penal de trânsito nas vias terrestres do território nacional, derrogou
parcialmente o citado art. 32 da LCP, remanescendo o dispositivo na parte em
que se refere a embarcação a motor em águas públicas (STF, Pleno, RHC
80.362/SP, j. 14.02.2001, Rel. Min. Ilmar Galvão, noticiado no Informativo-STF
nº 217). Modificação do ponto de vista deste Relator. Embargos de divergência
rejeitados” (STJ – 3ª Seção - ERESP 226849/SP – Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA
FONSECA, DJU de 04/06/2001, p. 60).
“EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA – DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO – ABOLITIO CRIMINIS – ART. 32, DA LEI DE
CONTRAVENÇÕES PENAIS – ART. 309, DO CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO.
- O art.
309, do Código Nacional de Trânsito, revogou o art. 32, da Lei de Contravenções
Penais, acrescentando a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação.
-
Precedentes (Plenário do STF) e STJ (3ª Seção, EREsp 226849/SP, Rel. Ministro
José Arnaldo, DJU de 11.06.2001) - Embargos do Ministério Público rejeitados”
(STJ – 3ª Seção - ERESP 225558/SP – Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJU de
29/10/2001, p. 181).
Como se
sabe, a 3ª Seção do colendo Superior Tribunal de Justiça é composta pelos dez
ministros que integram a Quinta e a Sexta Turmas, às quais incumbe o julgamento
das causas que envolvam matérias de direito penal, logo, o julgado transcrito
reflete o entendimento pacífico do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Apenas
para ilustrar o tema, convida-se à leitura de alguns julgados do colendo
Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
“PENAL.
RECURSO ESPECIAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS. ARTIGO 32 DA LCP
E ARTIGO 309 DA LEI 9.503/97.
A novatio
legis, que acrescentou a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação,
revogou a contravenção (artigo 32 da LCP) (Plenário do Pretório Excelso).
Recurso desprovido, com a ressalva do entendimento do relator” (STJ – 5ª Turma
- RESP 311053/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER , DJU de 20/08/2001, p. 522).
“CRIMINAL.
RECURSO ESPECIAL. DIRIGIR VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. REVOGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32
DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. RECURSO DESPROVIDO.
I - A Lei nº
9.503/97 regulou todas as ações relativas ao direito penal do trânsito
terrestre de qualquer natureza, revogando parcialmente o art. 32 da Lei das
Contravenções Penais e fazendo com que a simples conduta de dirigir sem
habilitação subsista como infração administrativa.
II - Recurso
desprovido” (STJ – 5ªTurma - RESP 225567/SP – Rel. Min. GILSON DIPP,DJU de 27/08/2001, p. 368).
“PENAL.
CONTRAVENÇÃO PENAL. CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI
Nº 9.503/97. MERA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ATIPICIDADE PENAL.
- O ato
voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir a Carteira de Habilitação,
antes definido como contravenção penal, recebeu novo tratamento jurídico após a
edição do novo Código Nacional de Trânsito, que deu-lhe novo conceito: (a) se
tal postura não acarretar efetivo perigo de dano, com demonstração objetiva
dessa potencialidade, o fato consubstancia mera infração administrativa; (b) se
demonstrado o perigo, o fato é definido como crime (art. 309).
- A mera
conduta de dirigir motocicleta, sem perigo de dano, não tem repercussão no
campo criminal, sendo conduta penalmente atípica. - Recurso especial conhecido”
(STJ – 6ª Turma - RESP 264166/SP – Rel. Min. FONTES DE ALENCAR, DJU de
11/06/2001, p. 264).
“RECURSO
ESPECIAL. CONDUZIR VEÍCULO AUTOMOTOR SEM HABILITAÇÃO. CONTRAVENÇÃO.
ATIPICIDADE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.
1. A partir
da vigência do novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), o ato
voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir habilitação consubstancia
fato de mera infração administrativa, sendo definido como crime somente se
demonstrado o perigo de dano concreto, hipótese alheia à versada na espécie.
Precedentes.
2. Recurso
provido” (STJ – 6ª Turma - RESP 331304/SP – Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJU
de 25/03/2002, p. 316).
A decisão
abaixo do colendo Superior Tribunal de Justiça confirma tudo que foi exposto
acima, verbo ad verbum:
RECURSO
ESPECIAL. PENAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ART. 32 DA LEI DE CONTRAVENÇÃO PENAL
E ART. 309 DA LEI 9.503/97.
1. As Cortes
Superiores sedimentaram o entendimento no sentido de que a direção de veículos
automotores sem habilitação, nas vias terrestres, pode constituir crime, nos
termos do art. 309 do CTB, ou infração administrativa, consoante o art. 162,
inciso I, do CTB, a depender da ocorrência ou não de perigo concreto de dano,
restando, pois, derrogado o art. 32 da Lei de Contravenções Penais.
2. Recurso
parcialmente conhecido e, nessa parte, provido” (STJ - REsp 331.104/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2004, DJ 17/05/2004, p.
266).
Conforme
demonstrado acima, o simples fato de dirigir veículo automotor sem habilitação
representa apenas infração administrativa. Para configuração do crime previsto
no art. 309 da Lei n° 9.503/1997, é necessário que o guiador do veículo, além
da falta de habilitação, revele perigo concreto de dano, pela maneira anormal
de dirigir (exemplos: excesso de velocidade, dirigir sobre uma roda, freadas
bruscas, trafegar em ziguezague, subir calçada, invadir cruzamento, “fechar”
outros veículos, etc).
Finalmente,
após o exame da legislação, da doutrina e da jurisprudência, resulta evidente
que a mera direção de veículo sem habilitação configura apenas infração
administrativa de trânsito, visto que somente ocorre crime de trânsito, propriamente
dito, quando observa-se que há direção anormal capaz de configurar o perigo
concreto de dano exigido pela legislação em vigor, em consonância com a
exposição acima. Com efeito, não havendo perigo de dano na conduta investigada,
o fato será penalmente atípico.
Desde a
elaboração do atual Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/1997), vem
sendo objeto de divergência a questão da natureza jurídica da direção de
veículo automotor sem habilitação. Para uns configura crime, enquanto outros
consideram como mera infração administrativa. A finalidade do presente escrito
é contribuir para o esclarecimento do assunto, oferecendo opções de leitura ao
interessado no assunto.
Quanto à
natureza jurídica da conduta de dirigir sem habilitação, convém gizar, ab
initio, que a direção de veículo automotor sem habilitação configura infração
administrativa de trânsito, descrita no art. 162 do Código de Trânsito
Brasileiro, in verbis:
“Art. 162.
Dirigir veículo:
I - sem
possuir Carteira Nacional de Habilitação ou Permissão para Dirigir:
Infração -
gravíssima;
Penalidade -
multa (três vezes) e apreensão do veículo”.
Para
configuração do crime de trânsito consistente na direção de veículo automotor
sem habilitação, há necessidade da demonstração da existência do elemento do
tipo denominado “perigo de dano”. Aliás, tal expressão demarca a fronteira
entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, ipsis verbis:
“Art. 309.
Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir
ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de
dano:
Penas -
detenção, de seis meses a um ano, ou multa”.
O professor
Damásio de Jesus explica em que consiste o crime de perigo de dano concreto,
verbo ad verbum:
“Perigo
concreto é o real, o que na verdade acontece, hipóteses em que o dano ao objeto
jurídico só não ocorre por simples eventualidade, por mero acidente, sofrendo
um sério risco (efetiva situação de perigo). Na palavra da Claus Roxin, o
resultado danoso só não ocorre por simples casualidade (Derecho Penal; parte
general, cit., p. 336). O bem sofre uma real possibilidade de dano. São aqueles
casos em que se diz que o resultado não foi causado ‘por um triz’, em que o
‘quase’ procura explicar a sua não-superveniência. São episódios em que o
comportamento apresenta, de fato, ínsita a probabilidade de causar dano ao bem
jurídico e que, para a existência do delito, é necessário provar sua
ocorrência. Perigo concreto é, pois, o que precisa ser demonstrado (valoração
ex post, ‘prognose póstuma’). Ex.: no art. 132 do CP há a definição de crime de
perigo para a vida de outrem. O perigo, no caso, não é presumido, mas, ao
contrário, precisa ser investigado e comprovado” (CRIMES DE TRÂNSITO. 8ª edição.
São Paulo: Saraiva, 2009. p. 6).
A
contravenção de “falta de habilitação para dirigir veículo”, inscrita no art.
32 do Decreto-lei n° 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), foi revogada,
segundo entendimento da doutrina amplamente majoritária e orientação uniforme
dos Tribunais Superiores.
Os mestres
Fernando Capez e Victor Eduardo Rios Gonçalves tratam do tema com exatidão,
ipsis verbis:
“Se o agente
é legalmente habilitado, configura mera infração administrativa o fato de
dirigir veículo sem estar portando o documento” (ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO
DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 55).
Os autores
acima citados acrescentam que “a simples conduta de dirigir sem habilitação
passou a configurar simples infração administrativa (art. 162, I), demonstrando
que o legislador quis afastar a incidência de normas penais para o caso” (obra
citada, p. 57).
Os mesmos
professores foram além, esclarecendo ainda que “pela sistemática antiga, o ato
de dirigir sem habilitação configurava concomitantemente a contravenção penal
do art. 32 e a infração administrativa prevista no art. 89, I, do antigo Código
Nacional de Trânsito. O novo Código, entretanto, tratou tanto da questão
administrativa quanto da penal, dispondo que, se a conduta gera perigo de dano,
há crime, mas, se não gera, há mera infração administrativa” (obra citada, p.
57). Os docentes concluem que “o art. 32 da Lei das Contravenções Penais está
derrogado, valendo apenas no que se refere à sua segunda parte (dirigir, sem a
devida habilitação, embarcação a motor em águas públicas)” (obra citada, p.
60).
Os
penalistas Sérgio Salomão Shecaira e Luiz Flávio Gomes ensinam que “não
ocorrendo condução anormal, inexiste crime, subsistindo apenas a infração
administrativa. Assim, se o motorista é surpreendido estando conduzindo
normalmente o veículo, só há infração administrativa (art. 162, I, II e V, do
CT)” (In DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO – conferência – Cursos sobre Delitos de
Trânsito, Complexo Jurídico Damásio de Jesus, São Paulo, 6-3-1998, apud
ASPECTOS CRIMINAIS DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. 2ª edição. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 61).
O
criminalista Renato Marcão destaca que “a mera condução de veículo automotor em
via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se
cassado o direito de dirigir, não é suficiente para a conformação típica. É
imprescindível que se associe a tal prática a ocorrência de perigo concreto,
condição sem a qual a conduta não se ajusta ao tipo em comento, ficando
remetida à condição de mera infração administrativa”(CRIMES DE TRÂNSITO. São
Paulo: Saraiva, 2009. p. 206).
O excelso
Supremo Tribunal Federal proferiu decisões recentíssimas, verbo ad verbum:
“EMENTA: I.
Infração de trânsito: direção de veículos automotores sem habilitação, nas vias
terrestres: crime (CTB, art. 309) ou infração administrativa (CTB, art. 162,
I), conforme ocorra ou não perigo concreto de dano: derrogação do art. 32 da
Lei das Contravenções Penais (precedente: HC 80.362, Pl., 7.2.01, Inf. STF
217). 1. Em tese, constituir o fato infração administrativa não afasta, por si
só, que simultaneamente configure infração penal. 2. No Código de Trânsito Brasileiro,
entretanto, conforme expressamente disposto no seu art. 161 — e, cuidando-se de
um código, já decorreria do art. 2º, § 1º, in fine, LICC — o ilícito
administrativo só caracterizará infração penal se nele mesmo tipificado como
crime, no Capítulo XIX do diploma. 3. Cingindo-se o CTB, art. 309, a incriminar
a direção sem habilitação, quando gerar “perigo de dano”, ficou derrogado,
portanto, no âmbito normativo da lei nova — o trânsito nas vias terrestres — o
art. 32 LCP, que tipificava a conduta como contravenção penal de perigo
abstrato ou presumido. 4. A solução que restringe à órbita da infração
administrativa a direção de veículo automotor sem habilitação, quando
inexistente o perigo concreto de dano — já evidente pelas razões puramente
dogmáticas anteriormente expostas -, é a que melhor corresponde ao histórico do
processo legislativo do novo Código de Trânsito, assim como às inspirações da
melhor doutrina penal contemporânea, decididamente avessa às infrações penais
de perigo presumido ou abstrato. II. Recurso extraordinário prejudicado:
habeas-corpus de ofício. 5. Prejudicado o RE do Ministério Público, dado o
provimento do recurso especial com o mesmo objeto, é de deferir-se
habeas-corpus de ofício, se a decisão do STJ — no sentido da subsistência
integral ao CTB do art. 32 LCP, é ilegal, conforme precedente unânime do
plenário do Supremo Tribunal” (STF – 1ª Turma - RE-319556/MG – Rel. Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE, DJU Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos
da 2ª Turma) (vide Informativo STF n° 230).
“EMENTA: -
Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito
Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza
administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3.
Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação
em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR
GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus
conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento
da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80665/SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, DJU
Nr. 69 - 12/04/2002 - Ata Nr. 10 - Relação de Processos da 2ª Turma).
“EMENTA: -
Recurso Ordinário em Habeas Corpus. 2. Lei n.º 9.503/1997. Código de Trânsito
Brasileiro. Regulamentação, por inteiro, dos ilícitos de natureza
administrativa e criminal, concernentes ao trânsito em vias terrestres. 3.
Revogação do art. 32, da Lei das Contravenções Penais: direção sem habilitação
em via pública. 4. Precedente desta Corte: RHC n.º 80.362/SP, Rel. Min. ILMAR
GALVÃO, Pleno, sessão de 14.2.2001. 5. Recurso ordinário em habeas corpus
conhecido e provido, para conceder o habeas corpus e determinar o trancamento
da ação penal” (STF – 2ª Turma - RHC-80969 / SP – Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA,
DJU de 24-08-2001, p. 64).
Na esteira
do entendimento sufragado pelo Pretório Excelso, o colendo Superior Tribunal de
Justiça, passou a preconizar a orientação a seguir, verbatim:
“EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA EM RECURSO ESPECIAL. CONTRAVENÇÃO PENAL. DIREÇÃO DE VEÍCULO SEM
HABILITAÇÃO. ART. 32, LCP. ART. 309, DA LEI 9.503/97 (CÓDIGO DE TRÂNSITO
BRASILEIRO). DERROGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32 DA LEI CONTRAVENCIONAL.
O Plenário
do Col. Supremo Tribunal Federal proclamou, por unanimidade de votos, que o
novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), ao regular inteiramente o
direito penal de trânsito nas vias terrestres do território nacional, derrogou
parcialmente o citado art. 32 da LCP, remanescendo o dispositivo na parte em
que se refere a embarcação a motor em águas públicas (STF, Pleno, RHC
80.362/SP, j. 14.02.2001, Rel. Min. Ilmar Galvão, noticiado no Informativo-STF
nº 217). Modificação do ponto de vista deste Relator. Embargos de divergência
rejeitados” (STJ – 3ª Seção - ERESP 226849/SP – Rel. Min. JOSÉ ARNALDO DA
FONSECA, DJU de 04/06/2001, p. 60).
“EMBARGOS DE
DIVERGÊNCIA – DIRIGIR SEM HABILITAÇÃO – ABOLITIO CRIMINIS – ART. 32, DA LEI DE
CONTRAVENÇÕES PENAIS – ART. 309, DO CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO.
- O art.
309, do Código Nacional de Trânsito, revogou o art. 32, da Lei de Contravenções
Penais, acrescentando a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação.
-
Precedentes (Plenário do STF) e STJ (3ª Seção, EREsp 226849/SP, Rel. Ministro
José Arnaldo, DJU de 11.06.2001) - Embargos do Ministério Público rejeitados”
(STJ – 3ª Seção - ERESP 225558/SP – Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJU de
29/10/2001, p. 181).
Como se
sabe, a 3ª Seção do colendo Superior Tribunal de Justiça é composta pelos dez
ministros que integram a Quinta e a Sexta Turmas, às quais incumbe o julgamento
das causas que envolvam matérias de direito penal, logo, o julgado transcrito
reflete o entendimento pacífico do egrégio Superior Tribunal de Justiça. Apenas
para ilustrar o tema, convida-se à leitura de alguns julgados do colendo
Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
“PENAL.
RECURSO ESPECIAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ABOLITIO CRIMINIS. ARTIGO 32 DA LCP
E ARTIGO 309 DA LEI 9.503/97.
A novatio
legis, que acrescentou a elementar do perigo de dano à direção sem habilitação,
revogou a contravenção (artigo 32 da LCP) (Plenário do Pretório Excelso).
Recurso desprovido, com a ressalva do entendimento do relator” (STJ – 5ª Turma
- RESP 311053/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER , DJU de 20/08/2001, p. 522).
“CRIMINAL.
RECURSO ESPECIAL. DIRIGIR VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. REVOGAÇÃO PARCIAL DO ART. 32
DA LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. RECURSO DESPROVIDO.
I - A Lei nº
9.503/97 regulou todas as ações relativas ao direito penal do trânsito
terrestre de qualquer natureza, revogando parcialmente o art. 32 da Lei das
Contravenções Penais e fazendo com que a simples conduta de dirigir sem
habilitação subsista como infração administrativa.
II - Recurso
desprovido” (STJ – 5ªTurma - RESP 225567/SP – Rel. Min. GILSON DIPP,DJU de 27/08/2001, p. 368).
“PENAL.
CONTRAVENÇÃO PENAL. CONDUÇÃO DE VEÍCULO SEM HABILITAÇÃO. SUPERVENIÊNCIA DA LEI
Nº 9.503/97. MERA INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. ATIPICIDADE PENAL.
- O ato
voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir a Carteira de Habilitação,
antes definido como contravenção penal, recebeu novo tratamento jurídico após a
edição do novo Código Nacional de Trânsito, que deu-lhe novo conceito: (a) se
tal postura não acarretar efetivo perigo de dano, com demonstração objetiva
dessa potencialidade, o fato consubstancia mera infração administrativa; (b) se
demonstrado o perigo, o fato é definido como crime (art. 309).
- A mera
conduta de dirigir motocicleta, sem perigo de dano, não tem repercussão no
campo criminal, sendo conduta penalmente atípica. - Recurso especial conhecido”
(STJ – 6ª Turma - RESP 264166/SP – Rel. Min. FONTES DE ALENCAR, DJU de
11/06/2001, p. 264).
“RECURSO
ESPECIAL. CONDUZIR VEÍCULO AUTOMOTOR SEM HABILITAÇÃO. CONTRAVENÇÃO.
ATIPICIDADE. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA.
1. A partir
da vigência do novo Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503/97), o ato
voluntário de dirigir veículo automotor sem possuir habilitação consubstancia
fato de mera infração administrativa, sendo definido como crime somente se
demonstrado o perigo de dano concreto, hipótese alheia à versada na espécie.
Precedentes.
2. Recurso
provido” (STJ – 6ª Turma - RESP 331304/SP – Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES, DJU
de 25/03/2002, p. 316).
A decisão
abaixo do colendo Superior Tribunal de Justiça confirma tudo que foi exposto
acima, verbo ad verbum:
RECURSO
ESPECIAL. PENAL. DIREÇÃO SEM HABILITAÇÃO. ART. 32 DA LEI DE CONTRAVENÇÃO PENAL
E ART. 309 DA LEI 9.503/97.
1. As Cortes
Superiores sedimentaram o entendimento no sentido de que a direção de veículos
automotores sem habilitação, nas vias terrestres, pode constituir crime, nos
termos do art. 309 do CTB, ou infração administrativa, consoante o art. 162,
inciso I, do CTB, a depender da ocorrência ou não de perigo concreto de dano,
restando, pois, derrogado o art. 32 da Lei de Contravenções Penais.
2. Recurso
parcialmente conhecido e, nessa parte, provido” (STJ - REsp 331.104/SP, Rel.
Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 01/04/2004, DJ 17/05/2004, p.
266).
Conforme
demonstrado acima, o simples fato de dirigir veículo automotor sem habilitação
representa apenas infração administrativa. Para configuração do crime previsto
no art. 309 da Lei n° 9.503/1997, é necessário que o guiador do veículo, além
da falta de habilitação, revele perigo concreto de dano, pela maneira anormal
de dirigir (exemplos: excesso de velocidade, dirigir sobre uma roda, freadas
bruscas, trafegar em ziguezague, subir calçada, invadir cruzamento, “fechar”
outros veículos, etc).
Finalmente,
após o exame da legislação, da doutrina e da jurisprudência, resulta evidente
que a mera direção de veículo sem habilitação configura apenas infração
administrativa de trânsito, visto que somente ocorre crime de trânsito, propriamente
dito, quando observa-se que há direção anormal capaz de configurar o perigo
concreto de dano exigido pela legislação em vigor, em consonância com a
exposição acima. Com efeito, não havendo perigo de dano na conduta investigada,
o fato será penalmente atípico.